sábado, 27 de novembro de 2010

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época

Resumo de livro//www.infoescola.com/autor/marcel/33/l

POLANYI, KarlA Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus.
“Publicado originalmente em 1944, de grande impacto nas ciências sociais em todo o mundo, mas praticamente desconhecido no Brasil, o livro de Polanyi surge em nosso meio com atualidade renovada: ele se contrapõe de forma quase premonitória à onda de pensamento econômico neo-liberal…”
“Essencialmente, o livro é uma análise profunda, fortemente apoiada em materiais de tipo histórico, do que foi a revolução liberal que varreu o mundo ocidental no século dezenove, e quais foram e ainda são as conseqüências desta revolução para o século vinte. A tese é que a economia de mercado, que na realidade nunca foi tão liberal assim, foi um fenômeno específico dos novecentos, sem muitas raízes no passado mais remoto e sem condições de sobreviver ao século vinte.” São estas palavras (do primeiro e do segundo parágrafo) que o Diretor-Presidente de Estudos do Trabalho e Sociedade – IETS, Simon Schwartzman, classifica o livro de Karl Polanyi, “A Grande Transformação”.
Irei trabalhar nesse fichamento, de cinco capítulos, do três ao sete, tentando destrinchar e expor as idéias desse grande pensador, que na sua grande maioria são tão objetivas claras, que dispensam comentários, bastando colocar a frase utilizada no texto.
No capítulo três – “Habitação versus Progresso” – é ressaltado que a Revolução Industrial do século XVIII, trouxe progresso no sentido dos instrumentos de produção, mas uma desarticulação terrível na vida das pessoas comuns.
“Tentaremos desenredar os fatores que determinam as formas dessa desarticulação que teve a sua pior fase na Inglaterra há cerca de um século.” (p.51)
Essa desarticulação, mostra que a ideologia liberal falhou terrivelmente, o que faz com que não seja “preciso entrar em minúcias para compreender que um processo de mudança não-dirigida, cujo ritmo é considerado muito apressado, deveria ser contido, se possível para salvaguardar o bem-estar da comunidade.” (p.51)
Ainda nessa linha, a “teimosia” em julgar os acontecimentos sociais a partir do ponto de vista da economia, fez com o liberalismo econômico interpretasse mal a Revolução Industrial. Um exemplo claro disso, foram os enclausures (cercamentos de terra) para converter a terra arável em pastagem.
Assim, nosso propósito será, de um lado, demonstrar o paralelo existente entre as devastações causadas pelo cercamentos, finalmente benéficos, e as que resultaram na Revolução Industrial e, de outro lado – de uma forma mais ampla -, esclarecer as alternativas enfrentadas por uma comunidade no paroxismo de um progresso econômico não regulado. (p.52)
Tendo isso como base, um documento de 1607, publicado pelo Reino tratando sobre o problema existente dizia que: “o homem pobre terá satisfeito o seu objetivo – Habitação, e o nobre não ficará prejudicado em seu desejo – Progresso.” (p.52). Essa carta deixou bem claro que o crescimento econômico se apoiou na desarticulação social, basta notar que os cercamentos são exemplos claros que os ricos tiveram larga vantagem sobre pobres.
Até mortes aconteceram no parlamento na época, devido o ação da Cora em impedir os cercamentos, a fim de firmar sua posição contra a gentry, ou seja a pequena nobreza.
A onda da chamada política dos Tudors e dos primeiros Stuart, se expandiu, porém alguns historiadores, a classificaram de demagógica e até reacionária. Com todo esse “palco “ estruturado a ideologia desses Tudors e Stuart se inclinou de forma natural para o parlamento, que era favorável aos cercamentos.
Essas mudanças que ocorriam e ritmo que elas se davam, “muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança” (p.53), mas crença no progresso espontâneo, de acordo com o texto, “pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica.” (p.53)
Entretanto, é importante ressaltar que se não fosse a política conseqüente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts, o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso, transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo ao invés de construtivo. (p.53-54)
“A economia de mercado é uma estrutura institucional, e sempre nos esquecemos disto, que nunca esteve presente, a não ser em nosso tempo e, ,mesmo assim, ele estava apenas parcialmente presente.” (p.54) Apesar de parecer natural, isso é injustificado, dado todo o contexto. Voltando também ao que se dizia sobre mudança, seu resultado dessa poderá ser obtido a partir da comparação entre os ritmos da mudança e do ajustamento.
Passando mais adiante, a Coroa cedeu lugar para uma classe que promovia o desenvolvimento tanto industrial, como comercial, a política financeira da Coroa, começava a se restringir ao comércio.
“Nesse período (Revolução Industrial), foi ainda o progresso, na sua escala mais grandiosa, que acarretou uma devastação sem precedentes nas moradias do povo comum”. (p.57-58) As pessoas oriundas do campo, se aglutinavam nas favelas e em outros lugares precários.
Um frase muito importante desse capítulo, não pode ser esquecida:
  • A Revolução Industrial foi apenas o começo de uma revolução tão extrema e radical quanto as que sempre inflamavam as mentes dos sectários, porém o novo credo era totalmente materialista, e acreditava que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de um quantidade ilimitada de bens materiais.” (p.58)
Não é possível diante do exposto, afirmar que há somente uma causa para os acontecimentos da Revolução Industrial, todos estão juntos num mesmo contexto. Também não é possível afirmar que as máquinas provindas dessa revolução são as responsáveis, mas afirma-se que quando elas começaram a ser usadas “para a produção numa sociedade comercial, começou a tomar corpo a idéia de um mercado auto-regulável.” (p.59) Elementos envolvendo também esse mercado, geraram importantes conseqüências para o sistema social, o capitalismo industrial tomava espaço.
Nesse mesmo pensamento, “a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência.” (p. 60) É possível também encontrar a afirmação de que “todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ele deve ser vista como resultante de uma venda.” (p.60) Isto reflete de forma muito clara, o que significa o simples termo “sistema de mercado”.
“Os preços devem ter a liberdade de se auto-regularem. É justamente esse sistema auto-regulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado” (p.60) Essa transformação econômica dá-se de tal maneira que parece uma metamorfose. É preciso então, entender o mecanismo de funcionamento e as leis desse mercado auto-regulável
Nesse contexto, o capítulo quatro – Sociedades e Sistemas Econômicos – Polanyi afirma que “uma economia de mercado é dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado.” (p.62) Destacando dessa maneira, as características de não depender de interferências externas para poder organizar suas ações econômicas, dão créditos perfeitos para que esse sistema tenha o nome de auto-regulável.
Atribuindo valor ao que diz Adam Smith, sugerindo “que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados ou, da “propensão” do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa por outra.” (p. 62-63) O que mais tarde dá origem a figura do “Homem Econômico”, ou seja, o homem em intensa relação com a economia. Ainda na direção de Smith, o texto de Polanyi, ressalta que esta idéia, de pensar o homem como primitivo, estava falsa, pois o que realmente origina a divisão do trabalho são fatores ligados ao “sexo, geografia e capacidade individual” (p.63)
Outra idéia de Smith que foi comprovada com erro, foi a de que o homem primitivo, tinha na verdade um idéia comunista. Isto mesmo que de forma inconsciente, acarretou “um peso muito grande na balança” na idéia de mercado. Esse hábito de classificar as sociedades de poucos anos atrás como primitiva, devido o sistema econômico que adotavam, era feito como “mero prelúdio da verdadeira história da nossa civilização, que começou, aproximadamente, com a publicação da Riqueza da Nações em 1776.” (p.64)
“As diferenças que existem entre povos “civilizados” e “não civilizados” foram demasiado exageradas, principalmente na esfera econômica.” (p.64) Com isso, Max Weber, protestou contra a idéia de que as economias primitivas eram classificada irrelevantes para a questão das sociedades civilizadas. Estudos mostram que as sociedade primitivas não modificam o homem como um ser social, tanto é que algumas pesquisas também, mostram que “economia do homem, como regra, está submersa em suas relações sociais.” (p.65) Como exemplo disto, temos a sociedade tribal, onde a relação dos bens produzidos se dá por reciprocidade e redistribuição, atitudes estas não necessariamente ligadas a economia e, capazes de garantir o funcionamento de um sistema econômico sem muitos “paramentos”.
Já em certas civilizações, a divisão do trabalho se dá pela forma de redistribuição, mostrando que ela também tem a capacidade de influir o sistema econômico no tocante mais específico das relações sociais.
No entanto, “a necessidade de comércio ou de mercados não é maior do que no caso da reciprocidade ou da redistribuição.” (p.73) Nessa esfera, Polanyi diz que Aristóteles distinguiu a domesticidade propriamente dita da atitude de ganhar dinheiro, o que é classificado de “money – making”, insistindo (Aristóteles) também “na produção para o uso, contra a produção visando lucro, como essência propriamente dita.” (p.74).
Cabe nesse momento, dizer que ao denunciar o princípio da produção visando o lucro “como não natural ao homem”, por ser infinito e ilimitado, Aristóteles estava apontando, na verdade, para seu ponto crucial, a saber, a separação de um motivação econômica isolada das relações sociais nas quais as limitações eram inerentes. (p.75)
Os sistemas econômicos, desde o fim do feudalismo, principalmente na Europa Ocidental, se pautaram em fundamentos como o de reciprocidade, ou redistribuição, ou domesticidade. “Entre essas motivações, o lucro não ocupava lugar proeminente.” (p.75) A mudança para uma economia nova no século XIX, é preciso voltar e entender a história do mercado.
Um pouco dessa história é que vai abordar o capítulo cinco – Evolução do Padrão de Mercado -. Nessa linha de raciocínio, vê-se a afirmação de que o “controle do sistema econômico pelo mercado é conseqüência fundamental para toda a organização da sociedade: significa, nada menos, dirigir a sociedade como se fosse um acessório do mercado.” (p.77) Ainda nesse padrão, uma afirmação é essencial no texto,” EM VEZ DE A ECONOMIA ESTAR EMBUTIDA NAS RELAÇÕES SOCIAIS, SÃO AS RELAÇÕES SOCIAIS QUE ESTÃO IMBUTIDAS NO SISTEMA ECONÔMICO.” (p.77) A economia, se afirma como fator preponderante para o convívio social, antecedendo qualquer outro critério.
Ainda,“foi crucial o passo que transformou mercados isolados numa econômica de mercado, mercados reguláveis num mercado auto-regulável.” (p.77) E oportuno afirmar no entanto, que “a presença ou a ausência de mercados ou dinheiro não afeta necessariamente o sistema econômico de uma sociedade primitiva” (p.78) Assim, os mercados tem atuação principal na economia, mas fora dela essa atuação também acontece.
“Procurando as origens do comércio, nosso ponto de partida deveria ser a obtenção de bens distantes, como numa caça.” (79) Já “do ponto de vista econômico, os mercados externos e são algo inteiramente diferentes, tanto no mercado local, quanto do mercado interno.” (p.80)
Vamos entender nesse momento, alguns termos, tais como mercado externo, ou seja, ele é uma transação, é composto por instituições de função e origem diferente. Outro termo é o comércio local, aquele limitado as pequenas transações. Somando-se a esses termos, tem-se o comércio interno, que é o contraste dos outros termos, ele é essencialmente competitivo. (significados baseados na p.80) Mantendo assim “principio de um comércio local não-competitivo e um comércio de longa distância igualmente não competitivo” (p.86), dessa maneira “foi esse desenvolvimento que forçou o estado territorial a se projetar como instrumento de “nacionalização” do mercado e criador do comércio interno” (p.86).
Para tanto, a intervenção do Estado, que havia “liberado o comércio dos limites da cidade privilegiada, era agora chamada a lidar com dois perigos estreitamente ligados, o monopólio e a competição” (p.87), que encontrou na regulamentação (agora a nível nacional e não mais municipal) da economia uma solução para esse problema.
Já, “embora os novos mercados nacionais até certo ponto fossem competitivos, inevitavelmente, o que prevalecia era o aspecto tradicional da regulamentação e não o novo elemento de competição.” (p.87) Lembrando que como bem fala uma frase contida na página 88, “isto conclui nossa história do mercado até a época da Revolução Industrial.”
O capítulo seis – O mercado auto-regulável e as mercadorias fictícias: trabalho, terra e dinheiro – além de traças um rápido esboço dos sistemas econômicos e dos mercados, tomados em separado, mostra que até a nossa época, os mercados nada mais eram do que acessórios da vida econômica. Como regra, o sistema econômico era absorvido pelo sistema social (p.89)
“Uma economia de mercado é um sistema econômico controlado, regulado e dirigido apenas por mercados; a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo auto-regulável.” (p.89) Isso porém, ocasiona uma disputa no ser humano, a afim de sempre lucrar e ganhar mais.
Esse termo usado, auto-regulação, “significa que toda a produção é para a venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas.” (p.90) Há também, mercados “para todos os componentes da indústria, bens, trabalho, terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, preços de mercadoria, salários, aluguel e juros.” (p.90)
Sendo mercado auto-regulável, somente ações e medidas políticas que assegurem esse pretexto, é que terão validade, a fim de fazer o mercado a única figura organizadora no âmbito econômico.
Também lembrando do sistema mercantil (mercantilismo), mesmo com toda sua direção voltada ao comércio, impedia que o trabalho e a terra, os bens básicos de produção se tornassem mercadorias. Esse mesmo mercantilismo, diferentemente do mercado auto-regulável, defende a intervenção do Estado na economia, além disso, o mercantilismo estava preocupado com o desenvolvimento do pais em relação ao seus recursos. Retomando a idéia do mercado auto-regulável, este exige a separação da sociedade em esferas políticas e econômicas.
Sumarizando alguns desses pontos, sabe-se que os mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para um economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que sua substância humana natural, assim como sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico. (p.95)
Percebe-se com tudo, a partir da idéia de compra e venda, que a economia de mercado torna-se artificial.
Partindo para um outro ponto, a invenção das máquinas, influenciou fortemente na relação entre mercador e produção, tanto é que “a produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo mercador como proposição de compra e venda” (p.96), os investimentos a longo prazo começam a aparecer, ciente dos riscos que poderiam estar sujeitos, essa relação no entanto pode estar ligada também a idéia de que “ampliação do mecanismo de mercado aos componentes da indústria, foi a conseqüência inevitável da introdução do sistema fabril, numa sociedade comercial “ (p.97), fazendo com que inevitavelmente o trabalho e o dinheiro se tornassem mercadorias, mesmo que não mercadorias reais, pois não eram produzidas para venda no mercado.
A Revolução Industrial, causada pelo grande aumento na produção industrial, ocasionou impactos sérios na vida dos ingleses, porém nada foi feito para salva-los, tanto é que os impactos foram terríveis.
Mas enquanto de um lado avançava a idéia dos mercados, de outro instituições tentavam controlar esse avanço, principalmente em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro.
Enfim, “a sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável e, este foi o único aspecto abrangente na história desse período.” (p.98)
No sétimo capítulo – Speenhamland, 1795 -, nota-se que “durante o período mais ativo da Revolução Industrial, de 1795 a 1834, impediu-se a criação de um mercado de trabalho na Inglaterra através da Speenhamland Law (Lei Speenhamland)”. (p.99)
Isso deixou bem clara a exploração desumana aplicada na organização do mercado de trabalho. “Entretanto, só agora surgiu um problema crucial. As vantagens econômicas de um mercado livre de trabalho não podiam compensar a destruição social que ele acarretaria.” (p.99)
A intenção da Lei Speenhamlad, tinha o sentido de reforçar poderosamente o sistema paternalista da organização de trabalho, nos moldes herdados do Turdos e dos Stuarts. Ela introduziu uma inovação social e econômica que nada mais era que o “direito de viver” e, até ser abolida, em 1834, impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo. Outro aspecto da anulação de speenhamland, foi que, o sistema de salários teria que se tornar universal no interesse dos próprios assalariados, embora isto significasse privá-los da sua exigência legal a subsistência. Dessa maneira, o “direito de viver” significava uma armadilha mortal. Mesmo assim, durante a vigência desta lei, o indivíduo recebia assistência (abono salarial) mesmo quando o empregado, se seu salário fosse menor do que a renda familiar estabelecida por uma tabela na época. (trecho baseado nas páginas 100-101)
A lei distribuía diversos benefícios as pessoas, o que representava uma renovação incalculável do mesmo princípio regulador que se estava eliminando rapidamente na vida industrial como um todo, ou seja, nenhuma outra medida popularizou mais amplamente. (baseado nas páginas 101-102)
Essa lei, mostrou verdadeiramente ao povo inglês, a aventura social que haviam sido inseridos. A tentativa de criar uma ordem capitalista falhou, “seu rigor era visível e sua violação acarretava sanções cruéis contra aqueles que a tentavam.” (p.102)
Tendo como referência speenhamland, a sociedade debatia duas influencias, uma paternalista e que protegia a mão-de-obra dos risco do sistema de mercado e, outra pautada justamente na organização dos elementos de produção, sob um sistema de mercado. Em 1834, havia uma convicção enorme geral de a speenhamland não podia continuar, pois teria que ser criado um mercado de trabalho regular ou as máquinas serem desmontadas. Esse cenário todo configurava um período pré-capitalista.
A intervenção da Speenhamland contribuiu para o aparecimento das Anti-Combation Laws, uma intervenção posterior, e, se não fosse por elas, a Speenhamland poderia ter atuado no sentido de elevar os salários em vez de rebaixá-los como ocorreu. (baseado na p.104)
Assim, a conclusão a que se chegou, é que o abono salarial só podia ser inerente falho, pois prejudicava miraculosamente até mesmo aqueles que o recebiam.
Ainda sobre isso, é necessário falar as ciladas do sistema de mercado, que são três:
1ª – A Speenhamland (1795-1834) antecedeu a economia de mercado. Se destinou a impedir a proletarização do homem comum, ou pelo menos diminuir seu ritmo, o que apenas aumentou a pauperização das massas.
2ª – A Poor Law Reform (década que seguiu 1834), acabou com essa obstrução do mercado de trabalho; foi abolido o “direito de viver”, que acabou sendo mais um ato impiedosa da reforma social moderna.
3ª – Os efeitos deletérios de um mercado de trabalho competitivo após 1834 até o reconhecimento dos sindicatos, nos anos de 1870: este foi incomparavelmente mais profundo. Se a Speenhamland impediria a emergência de uma classe trabalhadora, agora os trabalhadores pobres estavam sendo formados nesse classe pela pressão de um mecanismo insensível. (características baseadas nas p. 104-105)
“Um mercado competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834; assim não se pode dizer que o capitalismo industrial, como sistema social, tenha existido antes desta data.” (p.106) O estudo de Speenhamland é o estudo do nascimento da civilização do século XIX, sabendo também que o pauperismo (extrema pobreza, pobreza em abundância), a economia política e a descoberta da sociedade estavam estreitamente interligados.
Em suma, “ a introdução da economia política no reino universal aconteceu em duas perspectivas opostas – a do progresso e do aperfeiçoamento, de um lado, e a do determinismo e da perdição do outro.” (p.108) O caminho para a pratica disso, passou por dois caminhos distintos, passando pelo harmonia e auto-regulação, em um, e pela competição e do conflito, em outro, isso fez com o liberalismo econômico e o conceito de classe fossem moldados por essas contradições ou dentro delas.
Nesse capítulo fichados, bem como em todo livro, “Polanyi mostrou como o estado, a serviço dos empreendedores, mobilizou-se para criar as condições em que a sociedade fosse submetida ao mercado. Não só isso, gerou-se um novo sistema social – a Grande Transformação – onde todos indivíduos tornaram-se “ átomos dispensáveis”, uma engrenagem que era de fato “ uma máquina… para qual o homem estava condenado a servir””. (1)
Referências:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2002/06/10/001.htm – Acesso em 14 jul. 2007
http://www.schwartzman.org.br/simon/polanyi.htm – Acesso em 14 jul. 2007

Artigo: Bolsa de valores para o terceiro setor, um caminho novo Por Edson Pinto de Almeida


LivroEconomia Civil - Eficiência, Equidade, Felicidade Pública
Autores:Luigino Bruni e Stefano Zamagniu

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico 

Uma bolsa de valores dedicada exclusivamente ao terceiro setor. A expectativa de que essa proposta seja concretizada em 2011, caso tenha aprovação do Banco Central italiano, é de um de seus idealizadores, Stefano Zamagni, professor de economia da Universidade de Bolonha. Ele é autor de vários livros e pregador incansável da economia do altruísmo, ou economia civil, como diz o título de sua obra mais recente, em parceria com o professor Luigino Bruni, da Universidade de Milão. Para o lançamento no Brasil, Zamagni fez uma palestra sobre o tema na Bienal do Livro, onde falou com exclusividade para o Valor.

A bolsa social, segundo Zamagni, não terá finalidade especulativa, mas servirá como fonte de recursos para organizações sociais, cooperativas e associações. Essas entidades do terceiro setor, que precisam de capital para seu desenvolvimento, pagariam no máximo 5% de dividendos ao ano. O lucro deverá ser reinvestido exclusivamente em atividades com fins sociais.

Abrir espaço para novas formas de equacionamento financeiro é mais um passo dessa corrente de pensamento que pretende humanizar o mercado. Suas origens remontam ao Quatrocentto italiano, com as organizações econômicas do início do Renascimento. A intenção é ganhar visibilidade e encontrar eco num momento de crise do atual modelo econômico.

Como explica Ricardo Abramovay, professor de economia da FEA-USP, no prefácio do livro, a economia civil se insurge contra o mito de que a esfera dos interesses econômicos pouco tem a ver com a do civismo, da qualidade dos vínculos sociais entre os cidadãos. Zamagni aponta a escola neoclássica como principal responsável por essa separação, pois consolida a visão utilitarista do economista inglês Jeremy Bentham (1748-1832). A doutrina do utilitarismo vê a conduta humana movida apenas pelo egoísmo e pela busca da felicidade. Zamagni faz distinção entre felicidade, como virtude social, porque é algo subjetivo e depende do relacionamento com outras pessoas, da visão utilitarista - no sentido de vantagem ou prazer de possuir alguma coisa. É possível maximizar a utilidade de alguma coisa sem depender de outro, mas é impossível ser feliz sozinho.

Para Zamagni, houve um movimento reducionista, que empobreceu a economia contemporânea. Nos últimos 30 anos, a autossuficiência da economia foi marcada pela globalização e pela terceira revolução industrial. A filosofia do individualismo destruiu a economia civil. Os economistas passaram a pensar que a ciência econômica e a ética são coisas excludentes.

Zamagni mostra em seu livro que é preciso haver uma nova convergência da economia no âmbito das ciências sociais. A economia civil, explica, é uma alternativa, não uma terceira via, ao neoliberalismo e ao socialismo. E pretende romper com a visão polarizada que existe hoje em relação ao mercado. Segundo ele, de um lado estão os que afirmam que o mercado gera riquezas, atua pelo bem comum e representa a sociedade civil. Qualquer interferência é danosa. De outro, estão os que enxergam no mercado um local de exploração de domínio do mais fraco pelo mais forte. A economia civil de Zamagni e Bruni acabaria - é a proposta deles - com o dualismo entre o equilíbrio mágico da eficiência do mercado e a ação reparadora do Estado para redistribuir a riqueza. As recentes crises financeiras mostraram os limites da autossuficiência do mercado.

Sua visão é crítica em relação aos dois pólos de pensamento. A economia de mercado do neoliberalismo não é liberal, porque afirma somente um tipo de empresa. Daí, a necessidade de criação da bolsa social como mecanismo de inclusão das empresas do terceiro setor. Sobre a outra ponta, Zamagni afirma que Marx nunca foi entendido pelos marxistas, nem pregou a revolução. Quem a fez foi Lenin. Marx via o socialismo como uma evolução posterior da fase de acumulação do capital. O economista italiano desenha um triângulo para explicar que Estado, mercado e sociedade civil devem agir de forma integrada. São instâncias que interagem. O Estado precisa ser forte em alguns momentos e, em outros, deve retirar-se, para que a sociedade civil se desenvolva. Zamagni defende a aplicação do princípio da subsidiariedade, como na União Europeia, segundo o qual, a instância mais alta (Estado) não deve fazer o que a instância local (comunidade) pode fazer.

A economia civil inclui as empresas do terceiro setor na vida econômica e não as vê como uma atividade paralela. O que o livro de Zamagni e Bruni propõe é quebrar a lógica dos dois tempos: antes, as empresas produzem; depois o Estado cuida do social. É preciso agir também no momento da produção da riqueza. Nas condições atuais, atuar apenas na redistribuição é demasiado tarde. Por conseguinte, o que se exige da empresa é tornar-se social na normalidade de sua atividade econômica. Em outras palavras, trazer valores éticos para o desenvolvimento sustentável é mais do que uma estratégia de marketing. É preciso resgatar o sentido de fraternidade da Revolução Francesa, que foi abandonado, e entender que o capitalismo não vai conseguir oferecer emprego para todo mundo e tampouco trazer reconhecimento pessoal e reduzir as desigualdades, diz Zamagni.

A economia civil advoga mais tempo livre para se alcançar a felicidade. A organização atual da sociedade, segundo Zamagni, insiste em reduzir o tempo livre, por ver no consumo a atividade econômica por excelência. Esquece, assim, a satisfação encontrada em atividades compartilhadas com outras pessoas. Valendo-se do pensamento de Aristóteles, Zamagni entende que a riqueza em si não produz mais felicidade, a não ser que seja um meio para se alcançar uma finalidade útil. A sociedade de consumo, de acordo com estudos apresentados no livro, faz da busca pela felicidade uma corrida na esteira rolante. Quanto mais ricos ficamos, mais exigimos e ocupamos tempo para ter mais, abrindo mão da saúde e da família. Em resumo: corremos cada vez mais rápido para não sairmos do mesmo lugar.
Autor: Luigino Bruni e Stefano Zamagni

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Por um Novo Humanismo na Economia - Marcus Eduardo de Oliveira*


19 de outubro de 2009
Parece ser consenso que a humanidade vive uma crise civilizatória. A fome que atinge 1 bilhão de seres humanos talvez seja a prova incontestável que as coisas não andam bem em matéria de dignidade e respeito ao próximo, termos esses caros a sociedades que se encontram “desconectadas” das boas e adequadas políticas públicas sociais. Até mesmo porque, nesse sentido, uma polêmica ronda essa discussão. Dizem, alguns, que temos que produzir mais porque somos muitos. Será isso verdade? Não seria melhor mudarmos o foco: produzirmos melhor (com qualidade), e não mais (diminuir a quantidade). Temos que “distribuir” e não “concentrar”.
No que toca a ignomínia da fome, temos que evitar o desperdício que beira cifras indecentes de 30% a 40% da produção de grãos e distribuir melhor os alimentos cuja produção atual é suficiente.
A produção de alimentos é suficiente
A produção mundial de alimentos dos dias de hoje dá conta suficiente das 6,7 bilhões de bocas a serem alimentadas. De acordo com a FAO (Fundo para Agricultura e Alimentação – ONU), entre 1950 e 2000, a produção mundial de grãos mais que triplicou, passando de cerca de 590 para mais de 2 trilhões de toneladas métricas ao ano. De 1950 a 1975, a produção de grãos aumentou em média 3,3% ao ano, um percentual maior do que o do crescimento populacional, de 1,9% ao ano.
No entanto, o “probleminha” da alocação/distribuição dessa produção nos lugares que mais carece de ajuda continua a não acontecer. E, assim, os que tanto precisam acabam ficando sem acesso. Menos da metade dos grãos hoje em dia é destinada à alimentação, enquanto a maior parte serve para fabricar rações animais, biocombustíveis e outros produtos industriais. Além disso, deve-se computar ainda o efeito de pragas sobre a plantação e o apodrecimento entre a colheita e o consumo. O que falta para uns, sobra para outros. É a distribuição que não é feita a contento.
Desse modo, temos que de um lado há um 1 bilhão de famintos; do outro, 1 bilhão de obesos.
E assim, outros e outros “probleminhas” que giram em torno da má distribuição de recursos e rendas vão se agravando, contribuindo, sobremaneira, para desumanizar ainda mais as relações entre nossos pares.
Em especial sobre a questão dos subnutridos, cabe ressaltar que esse mal acomete uma entre três crianças. Em números absolutos, a subnutrição e a fome crônica afetam aproximadamente 200 milhões de pessoas na Índia; mais de 200 milhões na África; 40 milhões em Bangladesh; 15 milhões no Afeganistão. O número de mortes por causas relacionadas com a fome é da ordem de nove milhões por ano. Isso resulta em uma média de 25 mil mortes por dia.

Percebe-se, com isso, que os números que perfazem a desigualdade são gritantes e inadmissíveis.
A conta disso é bastante simples: tem pouca gente ganhando muito, enquanto há muita gente que nada está ganhando. A riqueza de uns está sendo literalmente construída sobre a pobreza de milhões de pessoas.
O consumo excessivo de uns é a contrapartida da escassez de outros. Para uns sobra o que tanto falta a outros tantos. É o “desequilíbrio” que parece assim regular as atividades da economia gerando, na ponta final, mais desigualdade.

A falta de equilíbrio


Se as relações econômicas fossem, ao menos, próximas do equilíbrio, bastaria dividir a produção mundial (60 trilhões de dólares) por 6,7 bilhões de pessoas e obteríamos algo como 9 mil dólares por pessoa.
Mas, sabemos que não é bem assim que a coisa funciona. E sabemos também que a desigualdade não é natural, é imposta. E, sendo imposta, alguém está no “centro” dessas decisões dirigindo o destino de muitos que vão sendo condenados à miséria e a exploração. É a desumanização da economia que provoca a desumanização de nossos pares.

E a exploração está por todos os lados, incluindo até mesmo os que estão fora desse “deus-mercado” que é abençoado pelo “consumo excessivo”, regulado pela lógica mercadológica que defende que mais e mais produtos devam ser “empurrados” para um número cada vez mais crescente de compradores. É a lógica perversa do consumo excessivo que prioriza apenas o consumidor detentor de poder aquisitivo.
Nesse pormenor, o velho e bom Marx chegou a afirmar que “é melhor ser explorado pelo capitalismo do que não ser explorado por ele”. Marx sentenciava que ao não ser explorado pelo capitalismo, o trabalhador visivelmente não “existia”, pois se encontrava fora do mercado de trabalho (no desemprego) na condição de nem mesmo ser “explorado pelo sistema” (excluído).
Percebemos então que a exclusão social é de tamanha ferocidade que atinge até mesmo quem dela não contribui nem para o lucro do capitalista, nem para aumentar o número de produtos disponíveis no mercado. Em nossa opinião, esse é o “excluído dentro da exclusão” que contribui, assim, grosso modo, para a total desumanização das atividades.
Cabe reiterar que os números dessa “desumanização” são alarmantes. Do lado dos óbitos são: 10 milhões de crianças mortas a cada ano por problemas com “insegurança alimentar”; 25 milhões de vítimas do HIV/AIDS até os dias de hoje; 1 bilhão e meio de pessoas sem acesso à água potável; 3 milhões de mortes ao ano na África em decorrência da malária; meio milhão de mulheres que morrem no parto por deficiências no sistema de saúde. Acrescenta-se a isso o aquecimento global que provoca o desequilíbrio do ecossistema a ponto de chegarmos a seguinte conclusão: não é o planeta Terra que está prestes a entrar em decomposição, somos nós. Não são os animais que entrarão em extinção, somos nós. Não é o habitat natural que soçobrará, somos nós.
O rumo que a economia tomou nos últimos quatrocentos anos apenas reforça essa idéia. No início, com os clássicos ministrando as primeiras lições, no centro da análise econômica estava o indivíduo. Era a ação humana – palavra cara a Escola Austríaca de Economia – o fator responsável pelos avanços.
Com o passar dos tempos e com a chegada dos marginalistas na cena econômica, a análise matemática ganhou relevância e as necessidades humanas deixaram de ser o ponto fundamental de preocupação.
O que fizeram então esses analistas econômicos da Escola Marginalista? Jogaram para escanteio o cabedal sócio-econômico que mirava as necessidades humanas e estabelecia o bem-estar como meta. Desde então, a economia se “matematizou” e, aos poucos, o social se tornou apêndice da matemática econômica.

Disso surge uma pergunta inevitável: o que tem que ser feito para resgatar o foco social e humano que um dia caracterizou a abordagem das ciências econômicas?
O resgate necessário


Precisamos praticar a Economia Solidária, a Economia Sustentável, a Humanização da Economia na qual o dinheiro não seja o ponto central. É simples? Não. Porém, não é impossível.

Para tanto, “É preciso reinventar uma economia da convivência”, diz Edgar Morin. Dom Pedro Casaldáliga, nessa mesma linha, fala em “humanizar a humanidade”; enquanto o educador Marcos Arruda escreve sobre tornar “real o possível”.
Mas, o que é “real” e o que significa, de fato, o “possível”? Real é desejarmos um mundo melhor para todos, sem exceção, nem discriminação. Possível é praticarmos isso mediante a cooperação e a solidariedade. No lugar da competição coloquemos a cooperação. Em lugar do individualismo, solicitemos a coletivismo, a ajuda mútua, a socialização dos benefícios.
A canção popular entoada em cantos religiosos profetiza que “Deus criou o infinito para a vida ser mais”. Viver é isso. Viver é conviver. Não nascemos sozinhos, não estamos isolados, não habitamos ilhas em isolacionismo perpétuo. Vivemos em comunidade. Em comum unidade. Logo, vivenciamos o coletivo, não o individualismo.
No entanto, só vale a pena viver em um mundo onde esse mundo mereça ser vivido. Do jeito que está, com as desigualdades sociais e econômicas esparramando miséria e indecência por todos os lados, até mesmo sonhar a possibilidade de construir uma vida igualitária e digna torna-se algo espinhoso. Parte daí a necessidade de humanizar a economia, visto que a economia “estuda” o comportamento dos agentes econômicos. Assim, por essa casual definição, a economia estuda o “nosso” comportamento, porque somos, antes de qualquer outra coisa, agentes dessa transformação que se faz necessária.
É nesse sentido que desejamos promover o resgate do verdadeiro fundamento da ciência econômica e torná-la útil em nosso favor, usando a Economia como instrumento da construção do bem comum. Nesse pormenor, cabe ao economista entender o mundo e propor alternativas.
Ladislau Dowbor nos diz que “a economia é um meio que deve servir para o desenvolvimento equilibrado da humanidade, ajudando-nos, como ciência, a selecionar as soluções mais positivas, a evitar os impasses mais perigosos”.
Em nosso entendimento, a economia só faz sentido de ser e torna-se útil se, e somente se, agrupar em seu intento crescimento econômico (equilibrado), equilíbrio ecológico (meio ambiente sustentável) e progresso social (justiça e equidade). Fora disso, a Economia encontra-se totalmente desconectada da realidade.


Economista, mestre pela USP e professor universitário. Especialista em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP).
Contato: prof.marcuseduardo@bol.com.br

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Renda Básica de Cidadania e a Justiça distributiva. Entrevista especial com Leonel Cesarino Pessoa

O desenvolvimento econômico dos últimos séculos seria mais que suficiente para que a pobreza do mundo estivesse, há muito tempo, erradicada”, constata Leonel Cesarino Pessoa.
Segundo ele, além da má distribuição de renda, a capacidade contributiva é outro fator que favorece o aumento da pobreza. Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o pesquisador diz que, no que se refere aos impostos diretos, a legislação institui um mínimo vital e o quantifica, mas o problema surge, justamente, com os impostos indiretos. “Nesse tipo de tributo, quem arca com o ônus fiscal é o contribuinte de direito, mas esse ônus é repassado para o contribuinte de fato, os consumidores finais. Esses podem ser muito pobres, cuja renda não ultrapasse a zona de mínimo vital. Nesse caso, eles deveriam pagar imposto? Para mim, é claro que não deveriam. Mas, no Brasil, eles pagam”. De acordo com Pessoa, “quem recebe até dois salários mínimos de renda familiar mensal gasta 53,9% do que ganha para pagar tributos”.
Na opinião do pesquisador, “iniciativas como a Renda Básica de cidadania surgem em razão de parte da população, no Brasil e em outros países, ganhar menos do que o essencial para viver”. Assim, menciona, programas de distribuição de renda sinalizam um avanço “no sentido de corrigir a injustiça do nosso sistema tributário e fazer justiça distributiva”.

Pessoa é graduado em Direito e Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, instituição na qual fez também o doutorado. Cursou pós-doutorado na New School for Social Research, Nova York e na Università Commerciale Luigi Bocconi, em Milão, na Itália. É professor do programa de mestrado e doutorado em Administração de Empresas na Universidade Nove de Julho, São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De onde surge a necessidade de o mundo globalizado pensar iniciativas
como a Renda Básica de cidadania?
Leonel Cesarino Pessoa – Iniciativas como a Renda Básica da cidadania surgem em razão de parte da população, no Brasil e em muitos outros países, ganhar menos do que o essencial para viver. O desenvolvimento econômico dos últimos séculos seria mais que suficiente para que a pobreza do mundo estivesse, há muito tempo, erradicada. No entanto, os dados disponíveis são de conhecimento de todos. Ao lado da pobreza extrema, nós temos a péssima distribuição de renda. Isso acontece em vários países e, nesse quesito, o Brasil se destaca. De acordo com um livro recente, organizado pelo professor Ricardo Paes de Barros, de todos os países para os quais se tem dados disponíveis, 95% deles apresentam concentração de renda menor que a do Brasil. Por aqui, a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à renda apropriada pelos 50% mais pobres.
IHU On-Line – Em que sentido a Renda Básica de cidadania está relacionada com a capacidade contributiva?
Leonel Cesarino Pessoa – O princípio da capacidade contributiva aparece, hoje, nas Constituições de diversos países do mundo. No Brasil, ele apareceu, pela primeira vez, na Constituição de 1946 e, na Itália, na Constituição de 1948. Na Alemanha, apesar de não estar expresso na Constituição, o Tribunal Constitucional Federal entende que ele é expressão do princípio da justiça fiscal, que decorre da garantia de igualdade. Os direitos tributários sul-americanos sempre foram muito influenciados pelos direitos alemão e italiano. Na Itália, inicialmente, o princípio da capacidade contributiva foi interpretado como norma meramente programática. É como se ele não fosse propriamente uma lei que produzisse efeitos, mas uma norma que estabelecesse apenas intenções políticas. A partir dos anos 1960, no entanto, essa interpretação começou a mudar. O princípio da capacidade contributiva passou a ser interpretado como possuindo um conteúdo efetivo na proteção dos interesses, primeiro do contribuinte e depois do fisco. De acordo com essa nova interpretação, se a tributação deve ter por base a capacidade contributiva de cada um, onde não houver capacidade contributiva, não deveria haver tributação.
Em outras palavras, pessoas que não têm condições econômicas para pagar impostos não deveriam pagar imposto algum. A relação mais direta entre o princípio da capacidade contributiva e a Renda Básica vem daí. A aplicação do princípio da capacidade contributiva resultou no reconhecimento de uma zona de mínimo vital na qual não deveria existir tributação. Esse reconhecimento foi feito pela doutrina da Alemanha, da Itália e também do Brasil. O princípio da capacidade contributiva também foi interpretado como desempenhando um papel na proteção do interesse do fisco.
A garantia da Renda Básica também está associada à distribuição de renda, ou seja, ela surge em razão da péssima distribuição de renda. O princípio da capacidade contributiva poderia, pelo menos, em tese, cumprir uma função. Onde não houver capacidade contributiva, não deve haver tributação. Por outro lado, todas as situações que manifestam capacidade contributiva deveriam ser – todas elas – tributadas.
IHU On-Line – O que seria, em sua opinião, o mínimo vital para que o cidadão consiga viver com dignidade? Pensando na Renda Básica de cidadania, é possível quantificar isso em um valor determinado?
Leonel Cesarino Pessoa – Eu vou responder a partir da perspectiva da tributação. Em que medida essa teoria do mínimo vital é aplicada na prática, no Brasil? Esse é um tema complicado. Vamos por partes. Em princípio, no âmbito da doutrina do direito, o reconhecimento dessa zona de mínimo vital é pacífico. Todos concordam que deve haver uma zona de mínimo vital. Com relação à legislação, no entanto, nós temos duas situações distintas. No caso dos impostos diretos, a legislação institui um mínimo vital e o quantifica. Ele corresponde à zona de isenção. No caso do imposto sobre a renda, por exemplo, a renda mensal inferior a R$ 1499,15 (mil, quatrocentos e noventa e nove reais e quinze centavos) é isenta do imposto. No caso do IPTU, no município de São Paulo, por exemplo, todo imóvel cujo valor venal seja inferior a R$ 70.000,00 (setenta mil reais) é isento de IPTU. Todo o problema surge, no entanto, quando tomamos os impostos indiretos, o ICMS, por exemplo. Nesse tipo de tributo, quem arca com o ônus fiscal é o contribuinte de direito, mas esse ônus é repassado para o contribuinte de fato, os consumidores finais. Esses podem ser muito pobres, cuja renda não ultrapasse a zona de mínimo vital. Nesse caso, eles deveriam pagar imposto? Para mim, é claro que não deveriam. Mas, no Brasil, eles pagam. E muito. Estudo recente do IPEA aponta que, hoje, no Brasil, quem recebe até dois salários mínimos de renda familiar mensal, gasta 53,9% do que ganha para pagar tributos! Se a renda mensal dessa pessoa é, portanto, inferior a dois salários mínimos por mês, ela não estaria dentro de uma zona de mínimo vital, na qual tudo o que recebe é vital para sua sobrevivência? No Brasil, essa pessoa gasta mais de 50% do que recebe em tributos indiretos. Os impostos indiretos incidem inclusive sobre a cesta básica! Eu penso que isso precisa ser revisto com urgência. Esse estudo do IPEA também aponta que as pessoas que recebem mais que 30 salários mínimos gastam apenas 29% do que recebem com tributos. Isso mostra quanto o sistema tributário brasileiro é regressivo.
IHU On-Line – Como a inscrição do princípio da capacidade contributiva na Constituição contribuiu para equacionar o problema da justiça fiscal?
Leonel Cesarino Pessoa – O que eu costumo dizer é que, até hoje, esse princípio foi muito pouco aplicado na prática. Eu pesquisei todas as decisões do Supremo Tribunal Federal que aplicaram o princípio da capacidade contributiva e publiquei o resultado no último número da Revista Direito GV. Lá, mostro como, desde 1988 até o ano passado, esse princípio da capacidade contributiva apareceu em pouco mais de 70 acórdãos do Supremo. O primeiro resultado, portanto, indica que ele é muito pouco aplicado. Se examinarmos, então, as situações nas quais ele é aplicado, o resultado também não é muito diferente. Vou dar um exemplo do tipo de aplicação do princípio que é feito pelo Supremo: há duas empresas, uma grande e outra pequena, e ambas têm de pagar uma determinada taxa. O Supremo decidiu que, ainda que a Constituição disponha literalmente que o princípio da capacidade contributiva deva ser aplicado apenas a impostos, ele deve ser aplicado também às taxas. Do ponto de vista da justiça distributiva, esse tipo de problema é, a meu ver, muito pouco relevante. Diria que é quase irrelevante. Não tenho conhecimento de ninguém que tenha levado, até o Supremo, questões como, por exemplo, da incidência dos impostos indiretos sobre o consumo de pessoas que se encontrem na zona de mínimo vital. Essa, sim, poderia ser uma discussão que traria temas de justiça distributiva para o âmbito do tribunal. Você poderia dizer que seria mais adequado que esse tipo de discussão se desse no âmbito do Poder Legislativo. Pode ser, mas então que comece. Não vejo o Poder Legislativo, não vejo a opinião pública discutindo a justiça da carga tributária no Brasil.
IHU On-Line – Pessoas de baixa renda recebem auxílios do governo por meio de programas de distribuição de renda. Essa renda mínima tem algum impacto na vida das pessoas, considerando a carga tributária dos produtos?
Leonel Cesarino Pessoa – Sim, sem dúvida. Essa renda melhora a vida dessas pessoas e permite que elas possam consumir minimamente, não obstante os tributos indiretos.
IHU On-Line – Qual é o sentido de programas de distribuição de renda num país em que a carga tributária indireta é altíssima?
Leonel Cesarino Pessoa – Em primeiro lugar, não diria que a carga tributária indireta é altíssima, mas que ela é mal distribuída. Que ela é altíssima para as pessoas que ganham pouco. O ICMS incide sobre produtos nos quais não deveria incidir, já que são objeto do consumo das pessoas mais pobres. Como eu disse, no Brasil, há incidência de ICMS, inclusive sobre os itens da cesta básica. Tendo em vista essa situação, os programas de distribuição de renda minimizam o problema do consumo dessa parcela mais pobre da população. Mas isso não significa que a situação tributária não deva mudar.
IHU On-Line – Quais os aspectos positivos e negativos da instituição de renda mínima? Elas sinalizam um avanço ou retrocesso para a sociedade?
Leonel Cesarino Pessoa – Sinalizam um avanço. Sua instituição tira uma parcela importante da população, que vive com menos do que a renda mínima, da condição de pobreza extrema. É um avanço no sentido de corrigir a injustiça do nosso sistema tributário e fazer justiça distributiva. Penso que esses programas procuram contribuir para corrigir a grave situação de desigualdade que nós temos hoje, no Brasil. São programas que procuram enfrentar aquela que é uma das principais distorções da nossa sociedade: a péssima distribuição de renda associada ao fato de parte da população ainda viver em condições de pobreza extrema. Nesse sentido, não concordo absolutamente com esse uso pejorativo do termo assistencialista.
(Ecodebate, 15/06/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Economia de baixo carbono: o desafio brasileiro. Entrevista com Ricardo Abramovay

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“O país tem hoje uma situação privilegiada”, constata o economista Ricardo Abramovay. Segundo ele, este privilégio “exprime-se no fato de que a transição para uma economia de baixo carbono é capaz de compatibilizar seu crescimento com a preservação dos serviços ecossistêmicos básicos”. Para que o Brasil seja um exemplo internacional na relação entre economia e ecossistemas, elementos básicos devem ser cumpridos, menciona.
“É preciso que (da mesma forma que está ocorrendo na União Européia, no Japão, na China e nos EUA) a inovação industrial tenha por vetor fundamental a preocupação em reduzir ao mínimo o uso de materiais e energia por unidade de produto. Isso exige rastreamento mais aprofundado não só das emissões de gases de efeito estufa, mas dos impactos da produção material sobre a biodiversidade e, de maneira geral, sobre os materiais consumidos pela indústria. Além da chamada pegada de carbono, é fundamental rastrear a pegada de água e de todos os materiais usados na produção”. De acordo com Abramovay, outro elemento importante refere-se ao padrão de consumo atual. “Os padrões de consumo atuais tão concentrados em produtos alimentares de má qualidade, num padrão de mobilidade urbana insustentável e em formas de moradia apoiadas em imenso desperdício devem ser discutidos e modificados”.
Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o economista enfatiza que o “Brasil pode continuar desempenhando papel de destaque na oferta de commodities, ao mesmo tempo em que transita para uma economia de baixo carbono e baseada no conhecimento (e não na destruição) da natureza”.
No que se refere aos investimentos a partir das reservas de pré-sal, Abramovay é enfático: “O importante é que ao menos parte dos recursos do pré-sal seja dirigida para acelerar a transição do Brasil para uma economia de baixo carbono, de maneira que os usuários dos resultados da exploração do pré-sal respondam pelo pagamento dos direitos de emissão ligados a seu uso. É fundamental que se ampliem os investimentos em ciência e tecnologia ligadas ao conhecimento dos mais importantes biomas do país, para que o uso sustentável da biodiversidade”.
Ricardo Abramovay é mestre em Ciências Políticas, pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade de Campinas (Unicamp), e possui ainda cinco pós-doutorados, entre eles citamos o curso concluído na Ècole dês Hautes Études em Sciences Sociales. Coordenador do Núcleo de economia socioambiental (NESSA), ele faz parte do Programa de pesquisa Dinâmicas Territoriais Rurais do Centro Latinoamericano para el Deserrollo Rural (RIMISP), do Chile e do International Development Research Center (IDRC), do Canadá.
IHU On-Line – Como a política econômica brasileira deve ser repensada a partir da questão ambiental?
Ricardo Abramovay – O país tem hoje uma situação privilegiada que ele pode usar de forma inteligente ou desperdiçar. Este privilégio exprime-se no fato de que a transição para uma economia de baixo carbono, capaz de compatibilizar seu crescimento com a preservação dos serviços ecossistêmicos básicos, pode ser levada adiante de forma muito menos traumática que na maior parte dos países com a importância econômica do Brasil. A matriz energética brasileira é dependente de combustíveis fósseis em pouco mais de 50% (embora a presença das termelétricas esteja aumentando de forma preocupante). A média mundial é superior a 85% e a dos países mais ricos do planeta ultrapassa 90%. A redução no desmatamento da Amazônia aumenta a probabilidade de que os compromissos internacionais quanto à emissão de gases de efeito estufa sejam cumpridos.
O fundamental, então, é que estas vantagens sejam utilizadas para fazer da sociedade brasileira um exemplo internacional na relação entre economia e ecossistemas. Isso se traduz por três elementos básicos. Em primeiro lugar, é preciso que, da mesma forma que está ocorrendo na União Europeia, no Japão, na China e nos EUA, a inovação industrial tenha por vetor fundamental a preocupação em reduzir ao mínimo o uso de materiais e energia por unidade de produto. Isso exige rastreamento mais aprofundado não só das emissões de gases de efeito estufa, mas dos impactos da produção material sobre a biodiversidade e, de maneira geral, sobre os materiais consumidos pela indústria. Além da chamada pegada de carbono, é fundamental rastrear a pegada de água e de todos os materiais usados na produção.
O segundo elemento refere-se à Amazônia: não é possível que ela continue sendo encarada estrategicamente como o local de onde se extraem minérios, onde se produz energia e como o paraíso das commodities. É verdade que melhoram, nos últimos anos, as condições de exploração de energia, minérios e commodities. Mas ainda estamos a anos-luz da recomendação de Bertha Becker e Carlos Nobre, no documento de 2008 da Academia Brasileira de Ciências de construir uma economia baseada no conhecimento da natureza, no uso sustentável da floresta em pé. Estamos assim desperdiçando uma riqueza nacional fantástica e, mais que isso, a oportunidade de desenvolver um padrão de uso dos recursos produtivos que pode ser exemplar em termos internacionais.
O terceiro elemento refere-se ao próprio padrão de consumo atual. A contrapartida da redução da pobreza e da desigualdade é que deixa ainda mais patente a insustentabilidade do padrão de consumo que marca a sociedade brasileira. Quem mora em São Paulo percebe que a aspiração e o verdadeiro culto à propriedade de um automóvel individual, sua transformação não numa utilidade, mas num valor é apenas um exemplo de que aumento da renda não conduz necessariamente a aumento do bem-estar. Isso não significa que a renda dos mais pobres deva parar de crescer, é claro. Significa que os padrões de consumo atuais tão concentrados em produtos alimentares de má qualidade, num padrão de mobilidade urbana insustentável e em formas de moradia apoiadas em imenso desperdício, devem ser discutidos e modificados. O Plano Brasileiro de Ação para Produção e Consumo Sustentáveis – PPCS, atualmente em consulta pública, é um avanço importante nesta direção.
IHU On-Line – A presidente eleita, Dilma Rousseff, prometeu erradicar a miséria e reduzir a pobreza a apenas 4% da população até 2014. Quais os desafios nesse sentido? O Brasil tem condições de continuar reduzindo a pobreza, considerando o atual modelo de desenvolvimento econômico?
Ricardo Abramovay – Há duas dimensões importantes nesta pergunta. A primeira é que o sucesso em cada passo adicional na luta contra a pobreza é mais difícil que o passo anterior. Os que se encontram em situação de miséria absoluta, muitas vezes, são indivíduos e famílias – na maior parte dos casos famílias monoparentais, dirigidas por mulheres e, com frequência, por mulheres relativamente idosas – distantes de redes básicas de solidariedade capazes de suprir suas necessidades em momentos mais críticos e de abrir horizontes de mudança de vida em termos de emprego ou oportunidade de geração de renda. Se a ideia é realmente zerar a miséria absoluta, um caminho importante é a formação de equipes de agentes de desenvolvimento capacitados a dialogar com estas famílias e, sobretudo, a lhes abrir contatos e oportunidades que permitam recuperar sua autoestima e ampliar o horizonte social em que vivem. Os custos de formação de uma rede de agentes de desenvolvimento seriam certamente compensados pela redução na demanda por atendimento de urgência por parte destas famílias.
A segunda dimensão fundamental está na necessidade de se avançar muito mais na luta contra a desigualdade. Isso não depende estritamente de política econômica e sim de decisões que se referem à disponibilidade de assistência de qualidade às crianças desde a primeira infância e à qualidade do ensino público. Mais que de renda, o Brasil é um país em que ainda há uma profunda desigualdade de expectativas entre os filhos dos ricos e os que vêm de famílias pobres. O passo mais importante para extirpar a miséria absoluta é criar uma sólida rede de proteção à infância e uma política consistente de aumento na qualidade do ensino público e que permita que todos tenham a aspiração de cursar as melhores universidades e ingressar nos melhores postos do mercado de trabalho. Não se pode deixar de mencionar também as diferenças brutais na qualidade dos serviços de saúde de que desfrutam ricos e pobres no Brasil. Isso é um elemento que não apenas desperdiça vidas, mas que corrói o sentimento mínimo de solidariedade que deve marcar uma sociedade democrática.
IHU On-Line – A estratégia de manter o Brasil como o celeiro do mundo está na contramão da terceira revolução industrial, baseada na baixa emissão de carbono?
Ricardo Abramovay – O Brasil pode continuar desempenhando papel de destaque na oferta de commodities, ao mesmo tempo em que transita para uma economia de baixo carbono e baseada no conhecimento (e não na destruição) da natureza. Os segmentos mais esclarecidos do agronegócio já se deram conta disso e não é por outra razão que as mesas redondas da soja, dos biocombustíveis e da pecuária avançaram tanto. A produção brasileira de commodities sairá fortalecida de uma decisão em que os próprios empresários endossem uma política de desmatamento zero em todos os biomas do país e não só na Amazônia. Não é possível imaginar que seja necessário persistir no desmatamento da caatinga como base para a produção de gesso ou de ferro gusa. O desmatamento é a expressão do capitalismo brasileiro da primeira metade do século XX, que, entretanto, ainda tem uma força extraordinária. Um dos grandes desafios dos próximos anos é o fortalecimento de coalizões empresariais que façam da preservação dos serviços ecossistêmicos básicos uma das fontes fundamentais de inovação tecnológica e de ganhos econômicos. Mas, para isso, é fundamental sinalizar que aumento da produtividade e produção de qualidade não combinam com devastação.
IHU On-Line – Qual deve ser a posição do Brasil, a partir da descoberta de reservas do pré-sal, diante da questão energética e ambiental?
Ricardo Abramovay – O ponto de partida para esta resposta é a constatação da extraordinária eficiência energética do petróleo. Thomas Homer-Dixon e Nick Garrison, em Carbon Shift – How the Twin Crisis of Oil Depletion and Climate Change Will Define the Future (Random House Canada) não hesitam em afirmar que a população mundial quadruplicou no último século graças ao petróleo. “Convertemos petróleo em comida e comida em bilhões de pessoas”, dizem eles. Três colheres de petróleo cru contêm tanta energia quanto oito horas de trabalho humano. No último século a quantidade de energia por hectare nas terras agrícolas aumentou cerca de oitenta vezes. É óbvio que há inúmeras consequências negativas no uso do petróleo, que vão da poluição e das emissões de gases de efeito estufa até o próprio poder das companhias petrolíferas. Mas a verdade é que se trata de uma fonte de energia com eficiência impressionante e da qual a humanidade vai continuar dependente ao menos durante todo o século XXI.
Só que com o próprio esgotamento do petróleo a eficiência econômica na extração vai sendo reduzida: em 1930 o retorno energético do investimento em petróleo era de um para 100. Ou seja, cada unidade de energia gasta para extrair petróleo traduzia-se em cem unidades de energia obtidas. Hoje, a proporção caiu de um para 17, a profundidade média da extração subiu de 1000 para 2000 metros e o tamanho médio de um novo campo diminuiu de 20 milhões para um milhão de barris. Estes custos vão aumentar ainda mais como decorrência do acidente de Macondo, o poço da BP que explodiu no Golfo do México. Em reportagem recente no Valor Econômico (17-11-2010), Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, afirma que a indústria de petróleo tem deficiências no sistema de segurança da exploração em águas profundas. Corrigir estas deficiências significa aumentar os custos da exploração.
A este inevitável aumento no preço do petróleo acrescenta-se, é claro, a necessária cobrança pelas consequências destrutivas das emissões de gases de efeito. Ainda mais se forem levados em conta os trabalhos do mais importante especialista da NASA no assunto, James Hansen, de que não basta estancar as emissões, é necessário reduzir o nível de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera se quisermos legar a nossos filhos ecossistemas mais ou menos próximos ao que conhecemos.
O resultado é que o petróleo ficará mais caro em função de sua escassez, de seus crescentes custos de exploração e dos riscos a que esta exploração se associa. Além disso, o uso do petróleo deverá ser taxado por seus impactos negativos sobre a biosfera. Claro que haverá um imenso esforço de captação de carbono, mas isso só vai contribuir para encarecer as emissões, já que não se sequestra carbono gratuitamente.
O grande problema é que, apesar de tudo isso, nada indica, por enquanto, que as energias alternativas poderão substituir o petróleo como fonte de crescimento para a economia mundial. Uma conclusão possível desta constatação é que este crescimento terá que ser contido, sobretudo para os países mais ricos do planeta cujas necessidades básicas já foram atingidas e que já possuem a infraestrutura necessária a uma vida social digna. O que chama a atenção é que a ideia de que deve haver limites ao crescimento econômico, repudiada como quase folclórica no início da década passada, ganha um prestígio crescente nos círculos de negócios e entre alguns dos mais importantes economistas contemporâneos.
IHU On-Line – O petróleo do pré-sal pode financiar a transição do Brasil para uma economia com menor emissão de carbono? Como?
Ricardo Abramovay – Mesmo que do ponto de vista internacional o desafio estratégico esteja na redução das emissões de gases de efeito estufa, seria insensato não organizar a exploração do pré-sal, tendo em vista o inevitável aumento da demanda mundial por petróleo. O importante é que parte significativa dos recursos do pré-sal seja dirigida para acelerar a transição do Brasil para uma economia de baixo carbono, de maneira que os usuários dos resultados da exploração do pré-sal respondam pelo pagamento dos direitos de emissão ligados a seu uso. É fundamental que se ampliem os investimentos em ciência e tecnologia ligadas ao conhecimento dos mais importantes biomas do país, para que o uso sustentável da biodiversidade, a economia da floresta em pé, a economia do conhecimento da natureza, possa ganhar escala e influir sobre o próprio padrão de crescimento da economia brasileira.
IHU On-Line – Que heranças o governo Lula deixa para a nova presidente?
Ricardo Abramovay – A contribuição mais importante do governo Lula é de natureza institucional e se exprime em três realizações decisivas. A primeira refere-se à independência da Polícia Federal. É uma instituição respeitada e que leva adiante suas investigações de forma totalmente legal e profissional. O resultado é um avanço inédito na luta contra a corrupção em todos os níveis e por todo o país. Ali, onde há eventuais abusos de autoridade, o país dispõe de mecanismos claros para coibir. A segunda refere-se ao Ministério Público: era uma organização meio folclórica e radicaloide e hoje tornou-se uma instituição coesa que atua em áreas que vão da corrupção ao meio ambiente, atraindo para si alguns dos melhores jovens talentos. O terceiro elemento importante refere-se ao próprio funcionalismo. O aumento na quantidade de gestores públicos melhorou de forma impressionante a qualidade da máquina estatal. Dizer que nos últimos anos ampliaram-se os gastos com pessoal é um equívoco, pois não é esta a origem dos problemas do financiamento do Estado brasileiro e não leva em conta que gestores bem formados e bem pagos fortalecem justamente o caráter republicano do Estado. Quando se acrescentam a estes elementos institucionais o avanço na luta contra a pobreza e a desigualdade o resultado é que o país está em condições excepcionalmente favoráveis para enfrentar seu mais importante desafio econômico: mudar a qualidade de seu crescimento como base para aprofundar a luta contra a pobreza e a desigualdade.
(Ecodebate, 24/11/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]