quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Mudança nos termos de intercâmbio, desocidentalização e sustentabilidade ambiental, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

 Estamos assistindo atualmente a uma guerra cambial entre os diversos países do mundo, mas com os Estados Unidos e a China no centro da disputa. Esta guerra cambial reflete mudanças mais amplas que estão ocorrendo no mundo.
Enquanto o século XIX foi considerado um século inglês, o século XX foi considerado um século americano. Os Estados Unidos (EUA) aproveitaram os seus enormes recursos naturais, baixa densidade demográfica e grande vantagem comparativa na produção industrial e se tornaram uma potência mundial. A posição privilegiada dos EUA criou uma situação internacional em que os preços dos produtos industriais sempre se valorizavam em relação ao preço das matérias-primas (ou commodities, como se constuma dizer atualmente). Sem considerar outras injunções, a riqueza do país foi, em grande parte, o resultado do aproveitamento desta situação favorável.
Analisando o quadro econômico do século passado, Raul Prebisch e a escola cepalina consideravam que os países “periféricos”, ou do Terceiro Mundo, sofriam com a evolução desfavorável dos termos internacionais de troca, pois a baixa elasticidade renda da demanda de produtos primários por parte dos países desenvolvidos deprimia o preço das commodities, enquanto o aumento da produtividade do setor exportador transferia para o exterior o fruto do progresso técnico das economias periféricas.
Arghiri Emmanuel, de uma perspectiva teórica um pouco diferente, considerava que a deterioração do preço das mercadorias transacionadas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos era decorrente do baixo valor da força de trabalho periférica. Assim, os diferenciais de remuneração da mão-de-obra possibilitavam apropriações diferenciadas do lucro nos dois polos do sistema internacional. A baixa taxa de crescimento populacional nos países desenvolvidos e o alto crescimento populacional nos países periféricos reforçava a apreciação do valor da força de trabalho, nos primeiros, e uma depreciação, nos segundos.
O fato é que durante o século XX os países centrais apresentaram maior crescemento econômico do que os países periféricos, elevando as desigualdades internacionais da renda per capita. Desta forma, mesmo apresentado menor crescimento demográfico, os países desenvolvidos apresentaram grande crescimento do consumo de produtos de todos os tipos. Já os países subdesenvolvidos apresentavam alto crescimento demográfico e baixo crescimento do consumo. Portanto, o impacto ambiental foi maior nos países desenvolvidos, pois a pegada ecológica dos países mais ricos é cerca de 6 vezes superior à dos países mais pobres. Ou seja, o impacto ambiental do consumo dos ricos foi superior ao crescimento populacional dos pobres.
Contudo, este padrão começou a mudar a partir do ano 2000. Dados do FMI mostram que os países subdesenvolvidos e emergentes (cerca de 83% da população mundial) representavam apenas 38% do PIB mundial (em poder de paridade de compra – ppp), em 2000. Já em 2010, os países subdesenvolvidos representam 47% do PIB e devem ultrapassar 50% a partir de 2013. Isto é, no século XXI, os países do Terceiro Mundo estão apresentando maiores taxas de crescimento econômico. Nos dois últimos anos, os países industrializados passaram por severos surtos de instabilidade financeira. Assim com a Grécia, outros países avançados enfrentam problemas graves de dívida soberana e alto desemprego. Mas as economias emergentes, no passado consideradas como mais vulneráveis, provaram-se notavelmente resistentes.
A China é a grande responsável pela mudança e pelo alto desempenho. Em primeiro lugar, o país apresenta baixo crescimento demográfico (o país possui uma política draconiana de controle populacional) e alto crescimento econômico. Embora ainda não possa ser considerada uma nação desenvolvida, a China avança rapidamente no aumento do seu padrão de consumo e já é o país com maior impacto total sobre o meio ambiente e o maior emissor de gases do efeito estufa.
Mas o impacto maior tem sido a mudança nos termos internacionais de intercâmbio, pois a China tem conseguido ampliar a produção de bens industriais a preços declinantes, garantido uma demanda crescente de commodities a preços ascendentes. Ou seja, possuindo uma força de trabalho numerosa e barata, a China consegue incorporar, além de inovações teconológicas, capital humano e físico para produzir bens e serviços de baixo custo.
Nos últimos 20 anos, a China tem conseguido desinflar o preço dos produtos industriais, permitindo que as companhias possam rebaixar custos e preços, garantindo uma oferta quase ilimitada à crescente demanda de consumo da classe média mundial. O envelhecimento populacional e as recentes greves acontecidas em fábricas do sul da China podem colocar em xeque este esquema de mão-de-obra abundante e barata.
Concomitantemente à alta demanda chinesa por matérias-primas, que fez aumentar o preco das commodities no plano internacional, o alto superávit comercial com os países desenvolvidos possibilitou que a China acumulasse altas revervas cambiais que estão sendo investidas nos países do Terceiro Mundo, para garantir o suprimento de insumos industriais. Isto ficou claro em 2009 e 2010, quando os EUA e a Europa entraram em crise econômica, mas os países em desenvolvidos tiveram bom desempenho e sofreram pouco os efeitos e recessão acontecida nos países desenvolvidos.
A China colocou mais de US$ 50 bilhões na América Latina nos últimos 18 meses. Companhias estatais e bancos chineses estão investindo pesado na região, especialmente por meio de créditos garantidos com entrega de petróleo. Os objetivos são garantir matérias-primas, vender produtos e diversificar suas reservas internacionais. A Venezuela lidera com US$ 28 bilhões em créditos chineses. Depois vêm Brasil e Argentina, com US$ 10 bilhões cada. Muitos bancos e empresas chinesas são estatais ou contam com apoio do governo. Por isso, não se guiam só por lucro, mas também por decisões políticas, o chamado “capitalismo de Estado”. De certa forma, estas mudanças refletem a perda de influência do “Consenso de Washington” e mostram a crescente presença do chamado “Consenso de Beijing”.
Desta maneira, a China – que deve ser o país economicamente hegemônico do século XXI – está liderando uma grande transformação internacional que, do ponto de vista econômico, tende a favorecer os países em desenvolvimento. Isto quer dizer que são os países de maior crescimento demográfico que vão apresentar as maiores taxas de crescimento econômico. Portanto, enquanto o grupo desenvolvido – que mais poluiu no passado – tende a reduzir sua pegada ecológica no século XXI, os países subdesenvolvidos tendem a aumentar muito seus impactos ambientais.
A Índia, por exemplo, desde 2005, deve ter um aumento de 500 milhões de habitantes, chegando a 1,6 bilhão em 2050 (cerca de 1% ao ano). Mas em termos econômicos tem apresentado taxas de crescimento acima de 7% ao ano. Isto quer dizer que o crescimento do consumo indiano será enorme nas próximas décadas, como aponta a produção do carro Nano, da Tata Motors, que deverá custar módicos US$ 2,5 mil e deverá estar presente em todas as ruas da Índia e do mundo.
Segundo o relatório “Perspectivas sobre o Desenvolvimento Mundial 2010 – Deslocamento da Riqueza” (divulgado em 16/06/2010), da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, os 30 países da OCDE representavam 62% do PIB mundial, no ano 2000. Porém, os países subdesenvolvidos, ou emergentes (não pertencentes à OCDE) vêm apresentando um crescimento mais acelerado no século XXI e passaram de 38% do PIB, em 2000, para 49%, em 2010, e devem atingir 57% do PIB mundial, em 2030.
Ou seja, o centro de gravidade econômica do planeta tem caminhado em direção ao leste e ao sul do globo – isto é, dos países ricos que integram a OCDE para os países emergentes – fenômeno que o referido relatório chama de “deslocamento da riqueza”. Isto representa um processo de desocidentalização da economia internacional. Este processo de desocidentalização do mundo não significa que o Ocidente vá declinar em termos absolutos, mas significa uma perda relativa. Já os países não-ocidentais irão crescer em termos absolutos e relativos. A novidade é que, a partir de 2011, a participação da economia dos países ocidentais deixará de ser superior a 50% do PIB mundial (em valores ppp). A valores de mercado, as economias emergentes devem superar as economias avançadas antes do fim desta segunda década do século XXI.
Evidentemente, a perda de posição dos países “avançados” e o aumento absoluto e relativo dos países “emergentes” é uma boa noticia do ponto de vista da distribuição de renda e da força geopolítica dos países que não pertencem ao “Ocidente do Norte” (OCDE). A própria mudança da “governança global” do G-8 para o G-20 já reflete um certo peso das principais economias “emergentes”, como China, Índia,  Indonésia, Brasil, África do Sul, etc. Mas ainda falta se atingir uma maior representatividade das economias emergentes no FMI, Banco Mundial e instâncias de deliberação da ONU, como o Conselho de Segurança.
Porém, o crescimento econômico dos países mais populosos – que estão mimetizando o padrão de consumo dos países ocidentais – vai provocar um enorme stress sobre o meio ambiente. O grande desafio das próximas décadas será: a) garantir a capacidade de regeneração da Terra; b) mitigar o aquecimento global; e, c) garantir a sobrevivência da biodiversidade do Planeta. Assim, mais do que nunca é preciso discutir a alternativa do modelo do “decrescimento sustentável”, especialmente a redução das atividades mais poluidoras, com mudança no padrão de consumo e o avanço da sociedade do conhecimento e da produção de bens imateriais e intangíveis.

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